sábado, 27 de dezembro de 2008

COMO EM UM CONTO DE FADAS



Era uma vez, um menino que nasceu com uma doença degenerativa que o impossibilitaria, enquanto vida tivesse, de andar e mover braços. O menino nunca andou, tampouco mexeu os braços. Nunca sentiu o chão sobre os pés. Nunca penteou os cabelos. Nunca vestiu as próprias roupas. Cresceu se arrastando. A mãe e o pai do menino, lá em Barreiras, interior da Bahia, decidiram que o filho não iria viver naquela cidade, onde até os médicos que chegaram a vê-lo só lhe faziam previsões pessimistas. E pouco, muito pouco, entendiam o que o menino tinha de verdade. Um deles chegou a lhes dizer: “Essa criança tem problema no corpo inteiro. Como vão criar um menino assim?”. E, depois, sentenciou: “Ele não viverá muito”. Era uma vez, um menino que, aqui em Brasília, conseguiu um tratamento na Rede Sarah. Lá, a “estranheza” dele foi identificada. Ele é portador de artrogripose múltipla — doença congênita caracterizada por várias deformidades rígidas nas articulações. O menino e a família foram treinados a lidar com a deficiência. E como, mesmo com tanta dificuldade, poderia ser integrado à vida. Era uma vez, um menino que um dia, aos 4 anos, encontrou, em Planaltina, numa escola pública onde estudava, uma professora de educação física que acreditava — e acredita — na inclusão. Mais do que isso: ela acredita e gosta de gente. A vida do menino, a partir daquele encontro, mudaria para sempre. Ele se arrastava, mas participava das aulas. Até futebol jogava. Um dia, o menino pediu à “tia”, como súplica: “Me ensina a escrever”. Ela foi às lagrimas. “Como fazer aquele menino escrever, se ele tinha tanta limitação?”, perguntou a professora a si própria. Ela mesma achou a resposta: “A vida é feita de adaptações”. Era uma vez, uma professora, Crislei Maria de Morais, hoje com 35 anos, que acreditou naquela criança que não andava nem mexia os braços. O menino, então, começou a rabiscar as primeiras letras com a boca. Depois, escreveu o próprio nome. Formaram-se calos na língua. Ele nunca desistiu. Tempos depois, o menino que não desistiu da vida e a professora sonhadora decidiram, juntos, que ele escreveria um livro contando a própria vida. O preconceito que enfrentou desde que nasceu. As dificuldades do pai pedreiro e da mãe dona-de-casa para que o filho vivesse e levasse uma vida normal. Os sonhos e planos dele. A esperança escrita com a boca. Era uma vez, um menino que passou seis longos anos de sua vida escrevendo um livro. Varava noites insones, enchendo folhas de cadernos. Um dia, a obra ficou pronta. Mas nem o menino nem a professora tinham dinheiro para bancar a publicação. Em abril deste ano, o Correio contou, com exclusividade, a história de Jeferson Ramos da Cruz, de13 anos. O drama dele comoveu Brasília. A solidariedade se espalhou. Veio ajuda para reformar a casa humilde de chão de cimento bruto onde mora com os pais e os três irmãos, no Vale do Amanhecer. Chegou o computador, para que ele escrevesse melhor. E finalmente a ajuda para publicar a obra de Jeferson. O senador Cristovam Buarque (PTD-DF) e a editora Thesaurus se juntaram. O rascunho chegou à gráfica. No início deste mês, aquele monte de vida escrita com a boca virou livro de verdade. Minha vida em rodas me faz capaz de voar e sonhar nasceu com mil exemplares. Autógrafos A assessoria da apresentadora Xuxa, que vinha fazer um show em Brasília, soube da história do menino. Ela quis conhecê-lo. E o recebeu, no camarim. Ele lhe deu um livro, autografado. Ela lhe disse, em lágrimas: “Você é bonito de verdade. Sua história é um exemplo pra todos nós”. Uma assistente da rainha dos baixinhos, antes de o show começar, leu a reportagem do Correio no palco. A platéia se emocionou. Xuxa ainda o convidou para ir ao programa dela, no início de 2009. Jeferson virou notícia em matéria de televisão e programas de rádio. Era uma vez, um menino que escreveu um livro com a boca e o publicou. Mas faltava mostrá-lo às pessoas. Veio a tarde de lançamento, no último dia 17, na Administração Regional de Planaltina. Na segunda-feira passada, foi a vez da noite de autógrafos no Carpe Diem, na 104 Sul. Uma enorme fila se formou em torno do escritor. “Autografei mais de 100 livros”, comemora ele, sem esconder o orgulho. Entre aquela gente que foi conhecer Jeferson, havia um convidado muito especial. Mateus, de 12 anos, morador de Vila Velha, no Espírito Santo. Ele tinha vindo a uma consulta no Sarah. O garoto tem a mesma doença de Jeferson. A família de Mateus o levou para conhecer o menino que escreve com a boca. Mateus, por sua vez, pinta belos quadros, também com a boca. Emocionado, o escritor disse à mãe, naquela noite: “Nunca tinha conhecido ninguém como eu”. E autografou seu livro ao amigo recém-conquistado. Era uma vez, um menino que quis escrever um livro para que, com o que arrecadasse nas vendas, pudesse comprar uma cadeira de rodas motorizada. Ele lamenta o esforço que a mãe faz todos os dias para conduzi-lo dentro de casa e levá-lo à escola. Nem foi preciso esperar que todos os livros fossem vendidos. Na segunda-feira, horas antes do lançamento no Carpe Diem, um advogado do Plano Piloto doou a cadeira de que ele tanto precisava. Novos sonhos Na tarde de ontem, pilotando sua “Ferrari”, como ele a batizou, Jeferson admitiu ao Correio: “São as minhas pernas emprestadas. Há quatro dias, minha vida mudou pra sempre. Eu acordo de noite e acho que tô sonhando”. A mãe, Cleide Ramos, 32, chora: “Eu nem sei como agradecer toda essa reviravolta que aconteceu na vida do meu filho”. O pai, Gilmar Rosa, 33, homem de mãos calejadas e sentimento contido, também não esconde a emoção: “Como não chorar quando a gente vê um filho feliz e realizado?”. Jeferson agora tem muitos outros planos: quer escrever um segundo livro. Sobre o quê? “Eu e tia Crislei estamos vendo, mas vai ser alguma coisa sobre deficiência, não mais a minha, mas de outros tipos.” E não pára por aí: “Quero pular de pará-quedas. Deve ser pura adrenalina”. De cabelo com luzes e brinco na orelha esquerda, o vaidoso escritor adolescente também sonha em colocar um piercing na sobrancelha. “Meu pai disse que se eu ficasse menos envergonhado, ele deixaria. Eu já tô mais solto”, ele diz, às gargalhadas. E reconhece: “O ano de 2009 vai bombar pra mim”. Era uma vez, um menino que acreditou em sonhos e na vida. E fez dela, da sua vida com limitações, sua melhor e mais emocionante história.

SOLIDARIEDADE O livro está à venda na Livraria da Rodoviária. Preço: R$ 20. Contato com Cleide, a mãe:9128-8849
São as minhas pernas emprestadas. Minha vida mudou pra sempre. Eu acordo de noite e acho que tô sonhando.

Ecritor
Jeferson Ramos


Marcelo Abreu
REPORTAGEM

JOSÉ VARELA
FOTO

FONTE
CORREIO BRAZILIENSE





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